Este mês - Dezembro - celebramos os Direitos Humanos e começamos por trazer uma entrevista que nos permite reflectir sobre Feminismo. Para isso, convidámos a Raquel Serdoura, uma jovem ativista interseccional que participa debates, eventos ou em palestras com o objetivo de sensibilizar o maior número de pessoas sobre a importância do feminismo. Actualmente, a Raquel trabalha na Inspiring Girls Portugal enquanto Coordenadora de de Parcerias e Angariação de Fundos.
Em que momento sentiste que eras feminista?
Sinto que isto é um pouco triste de se dizer, mas senti-me verdadeiramente feminista a partir dos 11 anos quando comecei a reparar que os rapazes gozavam e desrespeitavam os corpos das raparigas. Até aí nunca tinha compreendido verdadeiramente, mas a partir do momento que me assediaram na rua com essa idade, percebi que as mulheres (especialmente as jovens) não são vistas da mesma forma. A injustiça sempre me fez confusão, especialmente sofrermos por algo que não temos controlo em escolher.
Para ti, por que razão (razões) o feminismo continua a ser atual no mundo de hoje?
Eu costumo dizer que enquanto uma mulher sofrer violência, todas sofremos. Apesar dos sucessos alcançados em muitos países, esta não é uma realidade universal. Casamento forçado e infantil, incapacidade de estudar, não acesso ao aborto, assédio sexual, violência com base no género são realidades diárias para muitas raparigas e mulheres no mundo. E o pior é que nem os homens estão a imunes a este sistema machista. Os homens têm as maiores de taxas de suicídio, de tempo na prisão e acidentes de viação. Em grande parte influenciado por uma teoria que diz que estes devem reprimir os seus sentimentos e qualquer atitude que seja remotamente “feminina”. Agora, como é que o feminismo pode ajudá-los? Fazendo-os perceber que o nosso género não é (nem deve ser) uma pré-condição para fazermos aquilo que seja. O feminismo é também uma luta de liberdade: A liberdade de fazermos o que queremos e sermos quem sermos. Enquanto uma mulher (e qualquer outra identidade de género) não poder ser verdadeiramente livre para escolher o seu futuro, o feminismo será necessário.
As mulheres têm mais tendência a sofrer de síndrome de impostor que os homens. Já sofreste/sofres de síndrome de impostor? E como fazes para combatê-la?
Já a música diz "É um mundo de homens, mas não seria nada sem uma mulher ou rapariga". E a questão é que o mundo não é lugar inclusivo, nós é o que temos de o tornar assim. Apesar de tudo o que nós fazemos e que tivemos de fazer, parece existir uma vozinha dentro de nós a dizer " Nada do que tu fazes é bom suficiente". E eu sei bem o que isso é. As mulheres são ensinadas a não levantar a voz para não serem "agressivas" ou "brutas". Este tipo de pensamento que diz que temos de ser recoletadas e passivas faz com que acabemos por duvidar de nós próprias quando queremos expressar aquilo que pensemos. No meu caso, o primeiro passo foi reconhecer que tenho síndrome de impostora . Porque muitas de nós também têm vergonha de o admitir, uma vez que isso parece uma fraqueza. Mas não é! O sistema está feito contra nós. Ele não nos quer confiantes e felizes. E cabe a nós combater isso. Agora, como é (que tento) combater o síndrome de impostora? Dizendo em voz alta que sei o meu valor. Várias pessoas já acreditam em mim, porque é que haveria de dizer que elas estão erradas? É verdade que tenho fraquezas (como todas as pessoas), mas isso não faz com que as minhas forças sejam de menor valor. Se estou na posição em que estou e faço o que faço é porque eu sou boa naquilo que faço. A nossa cultura confunde muito humildade com falsa modéstia. Reconhecer que somos boas a fazer alguma coisa não é arrogância, mas um reconhecimento das nossas capacidades.
Qual pensas ser o melhor método de ativismo pelo feminismo?
Às vezes simples é melhor. Efetivamente, estamos onde estamos em termos de direitos das mulheres por causa da cultura existente. Antes do 25 de abril, as mulheres não podiam viajar sozinhas e a violência doméstica nem era crime. Mas a cultura mudou, e percebeu-se (pelo menos a nível jurídico em Portugal) que as mulheres também são sujeitos de direitos! Por isso, acredito que uma forma muito simples de fazer a mudança é falar sobre estes assuntos em casa e nos espaços onde estamos. Debater com os nossos pais, avós, amigos e colegas, faz com que estes estejam abertos a outras perspetivas e talvez mudem a sua atitude. Não nasci na familía mais feminista ou progressista do mundo, mas depois de eu começar a trazer estes assuntos para casa, os meus pais ficaram muito sensíveis a estas temáticas e progressivamente, foram-se tornando mais feministas. Como costumam dizer "Podes não mudar o mundo, mas o mundo precisa de tudo aquilo que podes fazer!"
E alguém que não gosta de se juntar a grupos ou prefere contribuir para a causa mais discretamente. Que pode fazer?
Compreendo que existam pessoas que talvez queiram ser mais discretas, mas acho importante referir que se a mudança acontecer é porque é coletiva. Todos nós temos um papel a desempenhar, mas este ainda pode ser mais ampliado se nos unirmos a outras. De qualquer forma, caso ainda não estejam prontas para isso, podem sempre assinar petições, ir a manifestações, falar destes assuntos, ler livros sobre o tema, apoiar monetariamente causas que defendem os direitos das mulheres ... Como disse todos temos um papel, e este pode ser adaptado a cada uma de nós.
Todos já lidamos com comentários negativos ou piadas machistas de familiares ou amigos. Como reages nestas situações?
Na minha opinião, várias abordagens podem ser praticadas. É normal que se eu me sentir atacada ou derespeitada, eu tente defender-me. Esperar que as pessoas (especialmente mulheres) fiquem sempre calmas e compostas não é correto. No meu caso pessoal, eu tento perceber o que é que a pessoa acha graça ao dizer tal piada. Quando começamos a fazer perguntas sobre os preconceitos que as levaram a dizer algo assim, elas não conseguem bem explicar. Se ela não consegue explicar o porquê de achar piada sem se sentir mal, secalhar é porque a piada não tem assim tanta piada.
Trabalhas para a Inspiring Girls Portugal. Como podemos motivar e inspirar as gerações mais novas?
No caso da Inspiring Girls nós temos uma abordagem focada em desconstruir estereótipos ligados às profissões, através do contacto entre jovens e mulheres profissionais. A nossa filosofia baseia-se no "If you can see it, you can be it!" (Se consegues ver, consegues ser!). A verdade é que ainda hoje ainda vemos na televisão a primeira vez que uma mulher entrou num ramo profissional (sendo que Portugal nunca teve uma Presidente da República). Por isso, gostamos de mostrar diferentes mulheres que fizeram a sua carreira, de formas diferentes. As gerações mais novas para se sentirem inspiradas também precisam de se ver representadas. A representação e representatividade é muito importante para que as gerações mais jovens se sintam capazes elas mesmas de seguirem os seus sonhos. E isto vale tanto para uma menina que queira ser uma astronauta como para um menino que queira ser um educador de infância.
Consideras-te feminista interseccional. Porque é a interseccionalidade tão importante no feminismo?
Ao contrário do que muita gente pensa, o feminismo não é sobre sermos todas "idênticas" e ignorarmos as nossas diferências pessoais. Claro que todos somos pessoas únicas, mas temos em comum o facto de sermos pessoas. E como pessoas, vamos ter fatores que nos diferenciam. Agora, não é por termos fatores diferenciadores que deveríamos ser discriminados. Daí a importância da interseccionalidade. Há várias camadas à pessoa que somos, e com isso diferentes dificuldades. Uma mulher com deficiência não têm as mesmas facilidades que uma mulher que não tenha. Uma mulher trans não têm as mesmas facilidades que uma mulher cis. Uma mulher migrante não têm as mesmas facilidades que uma mulher que não o seja. Infelizmente, as nossas diferenças vão-se acumulando e muitas vezes em vez de serem vistas como forças, são vistas como fraquezas. Assim, o feminismo interseccional é super importante porque faz-nos compreender que precisamos de soluções compreensivas e inclusivas. O conceito de "Mulher" engloba em si também muitas formas de diferentes de ser mulher e o nosso feminismo se quer emancipar todas as mulheres, têm de compreender isso.
E achas que o feminismo já é inclusivo o suficiente? Que mais podemos fazer para que seja mais inclusivo?
O feminismo não é algo estanque, mas sim algo que foi sempre evoluindo. Por exemplo, a primeira vaga focou-se muita na questão dos direitos políticos e civis, contudo especificamente para mulheres de classe média-alta, brancas e com educação. A partir daí, o conceito foi-se abrangendo para ser aquele que é hoje (ainda que algumas pessoas rejeitem essa inclusão). Podemos ser sempre mais inclusivos, se bem que não sei o que isso vai implicar e que não tenha sido já sugerido (reconhecimento espaço de fala, inclusão nos projetos de decisão, por exemplo). Por exemplo, ao longo deste texto procurei fazer uma mistura entre o feminino e o neutro para ser mais inclusiva, mas também poderia ter usado o sistema "e" que engloba todes. O mais importante é que nós ouçamos uns aos outros e procuremos encontrar uma forma de inclusão em conjunto.
Uma recomendação de um livro.
Já está na altura de o reler, mas recomendo o Bad Feminist da Roxane Gay. O livro fala sobre a dificuldade de se ser uma feminista num mundo que não o é, mas também como não nos devemos sentir necessariamente culpadas porque gostamos de determinada música ou filme, ainda que não seja feminista (Acreditem, existem imensos) . A verdade é que nenhuma de nós é perfeita. Estamos a tentar mudar o mundo para um lugar que seja melhor para todas as pessoas e isso é complicado. O mais importante é que tentamos sempre melhorar e aprender e não necessariamente apontar o dedo a quem ainda não começou o seu caminho.